28 julho 2011

Persona

Entrei na loja. Lá estavam os rostos à venda, coloridos, com laivos deslizando suavemente; os penetrantes olhos idênticos, as bocas morenas.

Rostos artísticos, lisos e perfeitos. Apenas sombreados pela maciez das aquarelas. “Você é alguém com um rosto desses!” (o slogan dançava na vitrine). Verdade.  Acessos se abriam, gestos meigos refletiam no brilho das máscaras. O rosto da moda; a moda da vida.

Algumas cápsulas e a face emergia na carne. Tão nova e real como um rosto de criança. Plácida, isenta de vasinhos rubros, cravos oleosos, espinhas infectadas, nervuras e carquilhas. Fresca e límpida! Impecável; perpetuamente serena ao longo das adversidades. Maculada somente pela arte dos mestres.

Obra única. Tela viva.

A ação – tão simples – se repetia: o cliente entrava na loja, cumprimentava a vendedora que exibia sua fisionomia alegre (fisionomia exclusiva, patrocinada), e depois ia mirar os rostos expostos, demorando-se na escolha de um. Então, apaixonava-se pelo semblante de tons diletos, apaixonava-se pelo Outro, aquele que logo seria o Eu. O outro que nasceria em seu corpo como um pedaço do paraíso. 

– Bela escolha! – dizia a vendedora - Este é um rosto Kandinsky, os laivos têm o estilo inconfundível do pintor!

Sim, inconfundível. As células brotariam seu rosto Kandinsky; ou o rosto Miró; talvez o espantoso rosto Dalí. O rosto gritante de Picasso.

O cliente seguraria as cápsulas com mãos instáveis, tomando a promessa e a garantia de que teria o rosto escolhido. Rigorosamente. O rosto da moda. E desfilaria com a face ímpar, com os laivos ao estilo Miguel Ângelo ou Ingres. Os laivos únicos, inconfundíveis, atestando autenticidade...

Vi uma dúzia deles saírem da loja com suas cápsulas derretendo. Foi nesse instante que resolvi falar com a vendedora.  Sim, queria ver os rostos. Sim, queria comprar. O consumo da gênese do corpo. Descartável e múltiplo corpo. A mulher piscou os olhos exatos para mim e pediu que eu confirmasse o pedido. Confirmei. “Você é alguém com um rosto desses!”.  Verdade. Verdade. 

Saí da loja com as pernas bambas, engoli as cápsulas e sumi na multidão.

Um comentário:

Anônimo disse...

Martinha,

Muito legal o seu blog.

Parabéns.

UK