28 julho 2011

Casa reversa

Entrei na casa e passei milhares de vezes pelo corredor. As paredes chispando no tempo. Até que ouvi os passos.

Depois, um movimento em falso e as tábuas soltas se abriram. Debaixo das tábuas uma escuridão.

Debaixo das tábuas uma terra sedenta de sol, um campo lunar emergindo das frestas. Esqueletos de aranhas guardando as sombras.

Ouvi os passos; quis ouvir o que diziam. Atravessei o alçapão de meu tropeço.

Lá estavam, na treva empilhada, as tábuas de outros corredores antigos.  E logo ali, sob o céu de soalho, uma árvore estrangulada. Em seus galhos secos, ecos enrodilhados.

 Vi tudo – falei em voz alta.

Mas não. Quando virei para trás, o exército de meus passos me seguia, oriundo dos corredores avessos, querendo me acompanhar.  

Pontos Cegos

          "Pontos Cegos: quando é preciso confiar."

Pegou o bisturi e o deslizou pela derme. O corte expôs umas granulas de gordura, o tecido amarelo. De dentro emergia a primeira palavra.

 Tirei um ódio! – anunciou o cirurgião.

E lá se foi o ódio grafado, recém nascido das entranhas, maculado de sangue, para as mãos da enfermeira.  Um ódio velho, tomado de ranhuras e cicatrizes.

No monitor, o coração pulsava cadenciado. A pressão estável. O médico aprofundou o corte até encontrar a caixa torácica. A seguir usou o extensor para afastar as costelas. Assim que abriu uma brecha, borbotaram raivas e ódios, uma dúzia de vocábulos furiosos jorrou sobre o límpido tecido verde-claro que delimitava o campo. Estavam enegrecidos e fétidos. Um cheiro horrível de podre encheu a sala. O doutor respirou com dificuldade atrás da máscara.

Com a pinça começou a remover as palavras enredadas no pericárdio, estava infestado de mágoas e tristezas. Retirava os substantivos purulentos e os depositava na cuba metálica, que ia se enchendo. Os vocábulos putrefatos iriam todos para análise.

Por fim, após um meticuloso trabalho de limpeza, o doutor deparou-se com o pior: uma estenose na veia cava superior. Uma enorme raiva incrustada, de sólida fonte Impact, prestes a bloquear o fluxo sanguíneo. Optou por introduzir um cateter até o ponto da obstrução parcial. Lá, as diminutas lâminas afiadas e a borda de sucção cumpririam o intento. De fato, reduziram o vocábulo a pedaços e depois sugaram as sílabas destroçadas.            

– Peito limpo!

Com calma o cirurgião pôs-se a fechar os tecidos, camada por camada. Retirou os extensores. Selou o peito cosendo os pontos com cuidado. O paciente foi levado para a sala de recuperação, onde acordaria horas depois se sentindo mais leve. 

Sobre a mesa, a cuba repleta de palavras mortas.

Morte Plástica

A beleza do gesto... Desde sempre queria aquela fugacidade orgástica. Abriu o compartimento e deixou-a sair. Metros de pescoço emergindo, o misto de graça e deselegância, as pernas mais do que longas. A girafa saiu do compartimento e pisou na Lua.

 Um pequeno passo para uma girafa – murmurou para si, enquanto ela galopava em fluxos, estranhando a gravidade. 

Por fim livre na amplitude branco-cinzenta. Um palco sideral, pintura viva. No horizonte curvo, os olhos doces da criatura almejaram uma África intangível.

Quando o ar acabou, veio abaixo. E mesmo a extensão de seu corpo desarrumado (definitivamente lunar) era exatamente o que queria. O corpo de pontas na Lua, as patas díspares. A cabeça asfixiada contra o espelho do capacete. 

A beleza do gesto.  

Persona

Entrei na loja. Lá estavam os rostos à venda, coloridos, com laivos deslizando suavemente; os penetrantes olhos idênticos, as bocas morenas.

Rostos artísticos, lisos e perfeitos. Apenas sombreados pela maciez das aquarelas. “Você é alguém com um rosto desses!” (o slogan dançava na vitrine). Verdade.  Acessos se abriam, gestos meigos refletiam no brilho das máscaras. O rosto da moda; a moda da vida.

Algumas cápsulas e a face emergia na carne. Tão nova e real como um rosto de criança. Plácida, isenta de vasinhos rubros, cravos oleosos, espinhas infectadas, nervuras e carquilhas. Fresca e límpida! Impecável; perpetuamente serena ao longo das adversidades. Maculada somente pela arte dos mestres.

Obra única. Tela viva.

A ação – tão simples – se repetia: o cliente entrava na loja, cumprimentava a vendedora que exibia sua fisionomia alegre (fisionomia exclusiva, patrocinada), e depois ia mirar os rostos expostos, demorando-se na escolha de um. Então, apaixonava-se pelo semblante de tons diletos, apaixonava-se pelo Outro, aquele que logo seria o Eu. O outro que nasceria em seu corpo como um pedaço do paraíso. 

– Bela escolha! – dizia a vendedora - Este é um rosto Kandinsky, os laivos têm o estilo inconfundível do pintor!

Sim, inconfundível. As células brotariam seu rosto Kandinsky; ou o rosto Miró; talvez o espantoso rosto Dalí. O rosto gritante de Picasso.

O cliente seguraria as cápsulas com mãos instáveis, tomando a promessa e a garantia de que teria o rosto escolhido. Rigorosamente. O rosto da moda. E desfilaria com a face ímpar, com os laivos ao estilo Miguel Ângelo ou Ingres. Os laivos únicos, inconfundíveis, atestando autenticidade...

Vi uma dúzia deles saírem da loja com suas cápsulas derretendo. Foi nesse instante que resolvi falar com a vendedora.  Sim, queria ver os rostos. Sim, queria comprar. O consumo da gênese do corpo. Descartável e múltiplo corpo. A mulher piscou os olhos exatos para mim e pediu que eu confirmasse o pedido. Confirmei. “Você é alguém com um rosto desses!”.  Verdade. Verdade. 

Saí da loja com as pernas bambas, engoli as cápsulas e sumi na multidão.

Cattus Domesticus: Uma Vida Comigo

Felis cattus domesticus, digitígrado de unhas retráteis.

Meus cinco mamíferos carnívoros detentores de sete vidas (5x7=35):

Mimoso era branco, macho grande, boêmio, vivia metido em rinhas. Seus dois maiores feitos: abateu uma enorme pomba e seguia meu pai até o trabalho, feito cachorro que segue o dono na rua. Duas quadras adiante, quando chegavam num cruzamento movimentado, o gato desistia e voltava para casa. Anos depois, Mimoso doente incurável, meu pai o sacrificou com um tiro na cabeça. Não agüentou ver o sofrimento do companheiro.

Natilda, uma gatinha abandonada e que acabou sendo incorporada à família. Eu e minha irmã brincávamos tanto com a bichana que ela se tornou a primeira gata goleira da história. E que goleira! Defendia aquele gol com maestria! A bola de meia cruzava com velocidade e a danada da gata catava com firmeza no ar. O único problema é que Natilda se tornou pirada por tudo que se mexesse e não podia ver uma mão passar na frente sem agarrar com unhas e dentes. Mãos lanhadas, decidimos que era hora da gata mudar de esporte. Tentamos ensinar xadrez, mas ela só queria derrubar as peças. Mais tarde revelou outro talento: abria portas! Alguns de seus filhos fizeram a mesmíssima proeza.

Mique! Grande Mique! Codinome: Jaguatirica. Tinha uma pelagem estranha e era muito selvagem, arisco. Achamos que era gato do mato, mas depois, pesquisando, vimos que não, era gato comum ou fruto de um cruzamento desconhecido. Acendia fósforo por qualquer coisa, expulsou um segundo gato macho que tínhamos em casa. Perseguia-o tanto que o pobre rival sumia dias até que não voltou mais. Mique triunfou como um leão no território, com a idade foi ficando mais calmo, aceitando carinho.

Amarelo. Esse foi um presente de grego. Uma vizinha apareceu com um gato deitado numa caixa de sapato. Pediu desesperada que ficássemos com ele alguns dias, inventando uma história maluca com a mãe dela. O gato não andava. Claro que ficamos com pena e logo já estávamos cuidando da criaturinha. Sabe qual era o problema dele? Descalcificação. Só davam pão e água pro bicho. Os ossos eram frágeis e moles como gelatina. Remédio: cálcio, muito cálcio e uma alimentação decente. Recuperou-se, mas ganhou o apelido de buggy porque as patas dianteiras engrossaram e se fortaleceram, mas ficaram curtinhas em relação às traseiras: parecia um buggy rodando na estrada. Tinha o corpo entroncado, lembrando um tigre-dente-de-sabre. Viveu muitos anos, caçou uma perdiz e até papai foi.

Miquela. Chegou adulta, na maior cara-de-pau. Toda sedutora e manhosa, quando vi estava na cozinha pedindo comida, como se a casa fosse sua. Meu pai pegou o fusca e levou a gata embora. Uma semana depois, Miquela estava de volta, ninguém sabe como. Desta vez ficou. Uma linda gata negra e branca, mascarada. Era muda (todos os filhotes também), mas sempre soube nos levar na conversa.

Hoje os cinco bichanos (5x7=35) devem estar vivendo suas múltiplas vidas em algum outro lugar (uma vida foi comigo).

Gostosuras de Heleonora

Andava voando no seu triciclo. Tupy, o cachorro de estimação, e eventual delator, a seguia. Na cestinha pendurada no guidão da bicicleta, uma velha pasta escolar guardando os seus segredos. Estacionou o velocípede e foi abrir a pasta: canetas coloridas, rolo de cordão, caixinhas de fósforos, linha de nylon, velas, pedaços de jornal, tachas, um caderno pequeno, um vidrinho com álcool, vidrinhos vazios, um bodoque, um pano, uma lanterna, duas bergamotas. Quando a noite caísse iria brincar de esconde-esconde com os primos no quintal repleto de capim alto. E então faria suas travessuras e daria boas risadas.

Uma vela acessa atrás das moitas de cana de açúcar, tremeluzindo na escuridão. Um bilhete:

 Oi seus trouxas, eu não estou aqui! – escrevia com cuidado, desenhava as letras para que ficassem bem legíveis. Divertia-se muito antevendo o encontro do bilhete, o alvoroço que provocaria.

Deixou tudo pronto e foi subir numa árvore não muito distante, tomando o cuidado de esticar um fio de nylon no meio do mato, rente ao chão. Nylon invisível à noite e que faria os primos tropeçarem. Mais risadas. Espantava Tupy, o traidor, e então esperava. Era sempre a última a bater, anunciando o fim do jogo. Mas isso depois de hora ou mais. Teriam que procurá-la muito. Adorava aquilo!

A vela acesa tremeluzia e daí a pouco alguém gritava.

– Olha, tem uma luz nas canas!

A criançada corria para as canas e encontrava o bilhete desaforado de Heleonora debaixo da vela. Nesse ínterim, a menina já descia da árvore e tratava de mudar de lugar antes que dessem conta. Ia para o porão do chalé de madeira. Tupy aparecia e era arrastado junto antes que latisse na hora errada. Lá no porão escutava as vozes chamando. Um a um iam saindo dos esconderijos e vinham somar esforços para encontrar a pequena Heleonora. Já era uma das últimas. Logo não restaria nenhum a ser encontrado, exceto ela. No porão esperava, mas não ficava nas partes claras, onde a maioria se escondia, mas ia até os temíveis cantos estreitos e escuros. Enfrentava os medos, a lanterna acesa, com a luz vazando entre os dedos para que não iluminasse demais. E lá no recôndito escuro esperava o momento propício de sair e ir para outro lugar ou bater de vez na parede:

 Um, dois, três, Heleonora!

Quando a brincadeira terminava, a mãe chamava a turma inteira para um lanche. Vitamina de banana e bolo de laranja. 

Heleonora, rosto afogueado de tanta correria, riso fácil, carregava a pasta dos segredos na mão e recebia os cumprimentos dos primos.

 Onde se escondeu? Onde é o teu esconderijo secreto?

E a menina nada dizia, sorria ainda mais, enquanto saboreava um pedaço de bolo.

Contato

A moça, entregue, dorme. Lacraias escalam os seios da virgem e vêm beber leite à noite. Do bico duro e rosado chupam gotículas; um pouco do leite branco escorre pelo corpo.

Escorpiões emergem do colchão e vêm roçar entre suas coxas. A alvura da pele de lua contrastando com o vermelho da luxúria. Os bichos exploram os confins. 

O ventre trêmulo 

E então, a grande cobra, magnífica, veio tomar e envolver até a saciedade, até o último suspiro.

Cavalos

       O Mar da Guanabara fervia e a areia tomava tons rubros. Orla escarlate! – pensei – enquanto a praia ia ficando apinhada de curiosos.  Então, como que também querendo ver o que se dava, o Cristo desceu do Corcovado e veio caminhando até a baía. A longa veste mansa no tempo. Quando chegou, gritei por Ele. Acho que me ouviu, pois nos segurou na concha das mãos com extremo cuidado. Lá de cima vi a carroça sob as ferragens, o corpo do cavalo e o meu uma coisa só.

22 julho 2011

Amar o cão

O cachorro estava morto. Lá fora um céu escuro, um oceano às avessas. Sentiria falta de seus latidos para a Lua. Chorou um pouco. Passaria os próximos meses sem o cão, olharia pela janela e só notaria a fragilidade do casco, uma ninharia de metal o separando do vácuo. 

Anotou no diário: Zargo morreu.

Debruçou-se sobre o corpo. Acariciou-lhe a cabeça. Não fosse a rigidez por baixo dos pêlos, parecia estar dormindo. A pelagem dourada, as cores firmes.

Pegou o bicho nos braços e o carregou pelo corredor.

Meses depois um astronauta avistou a cena: um homem passeava no espaço com seu cão conduzido pela coleira. Orbitavam a lua, os dois.