02 dezembro 2011

O tricotar das máquinas

Osvaldo estava tecendo, continuamente, fazendo a junção dos sentidos, querendo expandir aquilo que era a própria natureza da tecitura e do gesto de urdir. Ele existia para esse momento prolongado, não importando tanto os tipos de pontos, a qualidade dos fatos, a dor ou o prazer. O existir era Osvaldo tecendo e a trama era o existir. 

Se na contextualização do ontem há diferentes vieses, no prolongamento dos fios que se entrecruzam não havia que se falar em vieses, pois tudo era viés. Cada fio entrelaçado compunha um pedacinho unívoco do todo e Osvaldo sabia muito bem disso. 

Ele podia trocar a técnica dos pontos com extrema facilidade. Ao fazer a mudança, sentia um prazer diferenciado, como se todo o universo se movesse ao seu toque. De fato, a expansão toda bailava na simetria do novo entrecruzar fluido.


Foi assim por muito tempo. 

Osvaldo cruzando cada fio em transe consigo e com os planos que iam se alargando nos horizontes de mesas e meses. Fios livres que se aninhavam no sentido dos gestos e da realidade elaborada. 

Mandaram aumentar a velocidade da urdidura. Osvaldo rapidamente adaptou-se à demanda, deu conta do fazer acelerado e os fios cruzaram o ar com destino certo e sem descanso. Os anos de prática e refinado saber, garantiram o crescimento da expansão sem falhas. A perfeição dos gestos perpetuou-se. Porém, à medida que os fios eram cada vez mais velocidade e precisão, Osvaldo começou a morrer. Estragou dois meses depois, impossível reparar o dano.



Francisco chegou, novíssimo e moderno. Não entendia ainda da trama que trama e que faz a vida em seus múltiplos fios, contudo, logo experimentava esse tricotar anônimo e não nomeado. Esse do qual era sujeito, mas também reflexo. A verdade é que cruzar os fios era um aprendizado insuspeito, pois os homens prestavam atenção na malha e seus produtos e esqueciam-se do gesto essencial. O gesto que, infinitamente, compõe, ordena, cria, vê dimensões que só quem olha vê, faz do nada o mundo que agora tocas e aprecias. 

Francisco não demorou a ultrapassar a coisificação do tear e compreendeu a verdadeira riqueza do que fazia. Tecelão de redes e de ares, de esperanças e de medos. Tecelão de vida e de toda morte e ressurreição que ela contém. Tecelão das coisas e das não-coisas. Francisco apropriou-se dos fios e do destino. 


Foi assim por muito tempo.

Quando os homens quiseram mais e mais, ele pensou em dar um nó cego e impedir a linha desvairada de perder seu sentido, porém, achou que seria pior gerar desengano. Aquietou-se. Deixou o braço perder o ritmo até enguiçar. Alguém, um dia, haveria de achar o fio da meada.

01 agosto 2011

Lar

A nave partiu. Duas luas iluminam a noite, uma grande e outra menor. Por que abandonariam um homem sozinho nesse lugar sem nome? Há picos e florestas. Caminho pela mata rumo a um dos cumes, quero ver algo mais, se puder.

O controle de meu traje indica autonomia de dois dias. Água, comida e ar racionados. Análise da atmosfera: respirável, mas com possível toxidade a médio ou longo prazo. Melhor manter a calma.

Ouço uivos. Uivos a distância. Lobos aqui? Amanhã a lua grande vai ser cheia. O satélite menor avança no quarto crescente.

Quando amanhece, as pedras cinzentas dos picos tocam as nuvens. A neve cobre parte das rochas, sendas de um branco absoluto. A beleza do lugar remete ao antigo e puro. Pequenas certezas.

Paro para descansar, bebo água. Faço uma fogueira. Mordo ração de sobrevivência. De alguma forma me sinto bem.

O pico está logo ali, a uns três quilômetros ao sul. Impossível escalá-lo sem equipamento. É enorme, toca as nuvens. A floresta a seus pés parece grama. Começa a escurecer de novo.

Anoitece muito rápido, as irmãs singram o céu cortando o nevoeiro. De repente a lua cheia emerge, fulgurante. Caio de joelhos, é dor ou êxtase?

Acordo com o traje arrebentado. Fico de pé, partes do traje caem no solo. Dispo os restos sentindo tremores. Nu, respiro, respiro. O ar ácido é bom. Examino os pedaços da roupa, o controle está esmagado. Nada mais entre mim e este mundo.

Volto a caminhar. Meus pés, a cada passo, afundam confortavelmente no solo úmido. Algo me manda continuar. Caminho até perder a noção. Não há tempo e nem distância.

Então, no crepúsculo, eu os encontro: um bando de homens nus. Todos de pé, voltados para o mesmo lado. Eles me olham mudos. São iguais a mim.

A lua menor vai ser cheia. Ficamos assistindo as irmãs subirem e quando o esplendor de suas faces nos toca há grande dor e êxtase. Minha boca se abre, enquanto todos os joelhos se dobram juntos, e, em uníssono, um uivo primal brota de minhas profundezas.

28 julho 2011

Casa reversa

Entrei na casa e passei milhares de vezes pelo corredor. As paredes chispando no tempo. Até que ouvi os passos.

Depois, um movimento em falso e as tábuas soltas se abriram. Debaixo das tábuas uma escuridão.

Debaixo das tábuas uma terra sedenta de sol, um campo lunar emergindo das frestas. Esqueletos de aranhas guardando as sombras.

Ouvi os passos; quis ouvir o que diziam. Atravessei o alçapão de meu tropeço.

Lá estavam, na treva empilhada, as tábuas de outros corredores antigos.  E logo ali, sob o céu de soalho, uma árvore estrangulada. Em seus galhos secos, ecos enrodilhados.

 Vi tudo – falei em voz alta.

Mas não. Quando virei para trás, o exército de meus passos me seguia, oriundo dos corredores avessos, querendo me acompanhar.  

Pontos Cegos

          "Pontos Cegos: quando é preciso confiar."

Pegou o bisturi e o deslizou pela derme. O corte expôs umas granulas de gordura, o tecido amarelo. De dentro emergia a primeira palavra.

 Tirei um ódio! – anunciou o cirurgião.

E lá se foi o ódio grafado, recém nascido das entranhas, maculado de sangue, para as mãos da enfermeira.  Um ódio velho, tomado de ranhuras e cicatrizes.

No monitor, o coração pulsava cadenciado. A pressão estável. O médico aprofundou o corte até encontrar a caixa torácica. A seguir usou o extensor para afastar as costelas. Assim que abriu uma brecha, borbotaram raivas e ódios, uma dúzia de vocábulos furiosos jorrou sobre o límpido tecido verde-claro que delimitava o campo. Estavam enegrecidos e fétidos. Um cheiro horrível de podre encheu a sala. O doutor respirou com dificuldade atrás da máscara.

Com a pinça começou a remover as palavras enredadas no pericárdio, estava infestado de mágoas e tristezas. Retirava os substantivos purulentos e os depositava na cuba metálica, que ia se enchendo. Os vocábulos putrefatos iriam todos para análise.

Por fim, após um meticuloso trabalho de limpeza, o doutor deparou-se com o pior: uma estenose na veia cava superior. Uma enorme raiva incrustada, de sólida fonte Impact, prestes a bloquear o fluxo sanguíneo. Optou por introduzir um cateter até o ponto da obstrução parcial. Lá, as diminutas lâminas afiadas e a borda de sucção cumpririam o intento. De fato, reduziram o vocábulo a pedaços e depois sugaram as sílabas destroçadas.            

– Peito limpo!

Com calma o cirurgião pôs-se a fechar os tecidos, camada por camada. Retirou os extensores. Selou o peito cosendo os pontos com cuidado. O paciente foi levado para a sala de recuperação, onde acordaria horas depois se sentindo mais leve. 

Sobre a mesa, a cuba repleta de palavras mortas.

Morte Plástica

A beleza do gesto... Desde sempre queria aquela fugacidade orgástica. Abriu o compartimento e deixou-a sair. Metros de pescoço emergindo, o misto de graça e deselegância, as pernas mais do que longas. A girafa saiu do compartimento e pisou na Lua.

 Um pequeno passo para uma girafa – murmurou para si, enquanto ela galopava em fluxos, estranhando a gravidade. 

Por fim livre na amplitude branco-cinzenta. Um palco sideral, pintura viva. No horizonte curvo, os olhos doces da criatura almejaram uma África intangível.

Quando o ar acabou, veio abaixo. E mesmo a extensão de seu corpo desarrumado (definitivamente lunar) era exatamente o que queria. O corpo de pontas na Lua, as patas díspares. A cabeça asfixiada contra o espelho do capacete. 

A beleza do gesto.  

Persona

Entrei na loja. Lá estavam os rostos à venda, coloridos, com laivos deslizando suavemente; os penetrantes olhos idênticos, as bocas morenas.

Rostos artísticos, lisos e perfeitos. Apenas sombreados pela maciez das aquarelas. “Você é alguém com um rosto desses!” (o slogan dançava na vitrine). Verdade.  Acessos se abriam, gestos meigos refletiam no brilho das máscaras. O rosto da moda; a moda da vida.

Algumas cápsulas e a face emergia na carne. Tão nova e real como um rosto de criança. Plácida, isenta de vasinhos rubros, cravos oleosos, espinhas infectadas, nervuras e carquilhas. Fresca e límpida! Impecável; perpetuamente serena ao longo das adversidades. Maculada somente pela arte dos mestres.

Obra única. Tela viva.

A ação – tão simples – se repetia: o cliente entrava na loja, cumprimentava a vendedora que exibia sua fisionomia alegre (fisionomia exclusiva, patrocinada), e depois ia mirar os rostos expostos, demorando-se na escolha de um. Então, apaixonava-se pelo semblante de tons diletos, apaixonava-se pelo Outro, aquele que logo seria o Eu. O outro que nasceria em seu corpo como um pedaço do paraíso. 

– Bela escolha! – dizia a vendedora - Este é um rosto Kandinsky, os laivos têm o estilo inconfundível do pintor!

Sim, inconfundível. As células brotariam seu rosto Kandinsky; ou o rosto Miró; talvez o espantoso rosto Dalí. O rosto gritante de Picasso.

O cliente seguraria as cápsulas com mãos instáveis, tomando a promessa e a garantia de que teria o rosto escolhido. Rigorosamente. O rosto da moda. E desfilaria com a face ímpar, com os laivos ao estilo Miguel Ângelo ou Ingres. Os laivos únicos, inconfundíveis, atestando autenticidade...

Vi uma dúzia deles saírem da loja com suas cápsulas derretendo. Foi nesse instante que resolvi falar com a vendedora.  Sim, queria ver os rostos. Sim, queria comprar. O consumo da gênese do corpo. Descartável e múltiplo corpo. A mulher piscou os olhos exatos para mim e pediu que eu confirmasse o pedido. Confirmei. “Você é alguém com um rosto desses!”.  Verdade. Verdade. 

Saí da loja com as pernas bambas, engoli as cápsulas e sumi na multidão.

Cattus Domesticus: Uma Vida Comigo

Felis cattus domesticus, digitígrado de unhas retráteis.

Meus cinco mamíferos carnívoros detentores de sete vidas (5x7=35):

Mimoso era branco, macho grande, boêmio, vivia metido em rinhas. Seus dois maiores feitos: abateu uma enorme pomba e seguia meu pai até o trabalho, feito cachorro que segue o dono na rua. Duas quadras adiante, quando chegavam num cruzamento movimentado, o gato desistia e voltava para casa. Anos depois, Mimoso doente incurável, meu pai o sacrificou com um tiro na cabeça. Não agüentou ver o sofrimento do companheiro.

Natilda, uma gatinha abandonada e que acabou sendo incorporada à família. Eu e minha irmã brincávamos tanto com a bichana que ela se tornou a primeira gata goleira da história. E que goleira! Defendia aquele gol com maestria! A bola de meia cruzava com velocidade e a danada da gata catava com firmeza no ar. O único problema é que Natilda se tornou pirada por tudo que se mexesse e não podia ver uma mão passar na frente sem agarrar com unhas e dentes. Mãos lanhadas, decidimos que era hora da gata mudar de esporte. Tentamos ensinar xadrez, mas ela só queria derrubar as peças. Mais tarde revelou outro talento: abria portas! Alguns de seus filhos fizeram a mesmíssima proeza.

Mique! Grande Mique! Codinome: Jaguatirica. Tinha uma pelagem estranha e era muito selvagem, arisco. Achamos que era gato do mato, mas depois, pesquisando, vimos que não, era gato comum ou fruto de um cruzamento desconhecido. Acendia fósforo por qualquer coisa, expulsou um segundo gato macho que tínhamos em casa. Perseguia-o tanto que o pobre rival sumia dias até que não voltou mais. Mique triunfou como um leão no território, com a idade foi ficando mais calmo, aceitando carinho.

Amarelo. Esse foi um presente de grego. Uma vizinha apareceu com um gato deitado numa caixa de sapato. Pediu desesperada que ficássemos com ele alguns dias, inventando uma história maluca com a mãe dela. O gato não andava. Claro que ficamos com pena e logo já estávamos cuidando da criaturinha. Sabe qual era o problema dele? Descalcificação. Só davam pão e água pro bicho. Os ossos eram frágeis e moles como gelatina. Remédio: cálcio, muito cálcio e uma alimentação decente. Recuperou-se, mas ganhou o apelido de buggy porque as patas dianteiras engrossaram e se fortaleceram, mas ficaram curtinhas em relação às traseiras: parecia um buggy rodando na estrada. Tinha o corpo entroncado, lembrando um tigre-dente-de-sabre. Viveu muitos anos, caçou uma perdiz e até papai foi.

Miquela. Chegou adulta, na maior cara-de-pau. Toda sedutora e manhosa, quando vi estava na cozinha pedindo comida, como se a casa fosse sua. Meu pai pegou o fusca e levou a gata embora. Uma semana depois, Miquela estava de volta, ninguém sabe como. Desta vez ficou. Uma linda gata negra e branca, mascarada. Era muda (todos os filhotes também), mas sempre soube nos levar na conversa.

Hoje os cinco bichanos (5x7=35) devem estar vivendo suas múltiplas vidas em algum outro lugar (uma vida foi comigo).